(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
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Sthevo Damaceno

Demasiadamente humano

Não tem como fugir. Mesmo que você não seja afeito às redes sociais, nem gaste tempo rolando o feed do TikTok, inevitavelmente alguns vídeos que viralizam na internet acabam chegando ao seu celular, nem que seja através do grupo de WhatsApp da família. Um desses vídeos, recentemente, chamou minha atenção: um sujeito esbravejava para a câmera, espantado com o fato de vivermos em sociedade e, mesmo assim, “ninguém se interessar em ler ou aprender sobre psicologia”, algo que facilitaria por completo nossas relações pessoais e interpessoais.

A ideia, é claro, não deixa de ter um fundo de razão. Mas a forma revoltada e histriônica que aquele indivíduo abordava o tema parecia esvaziar sua própria argumentação, o que ilustra muito bem o espírito do nosso tempo. Aliás, chega a ser ingênuo acreditar que exista uma bula prática e simples – como um tutorial de internet – para solucionarmos questões tão amplas. Como se bastasse ler um tratado de psicologia para, assim, não termos mais conflitos, problemas, dúvidas, queixas, risos e lágrimas nas nossas inúmeras relações humanas – demasiadamente humanas, como dizia o filósofo.

Por falar em filosofia, tempos atrás comentei aqui sobre Bertrand Russell, que sempre lembrava como os processos humanos muitas vezes carecem de depuração, de lapidação, exigindo um entendimento um pouco mais profundo do que dita o senso comum. A começar pela própria etimologia da palavra “humano”, já que “homo” tem ligação com “humus”, que significa “terra”, solo fértil. Isso mostra, como lembra Russell, que somos criaturas vinculadas aos fluxos da terra, com suas várias fases de plantio, crescimento e amadurecimento. Esse ciclo, porém, demora. Assim como é demorado o processo de compreender, mediar e aprimorar nossas relações humanas, sejam elas quais forem.

Sendo assim, em vez de se prender exclusivamente a manuais técnicos, talvez valha mais a pena investir na leitura dos grandes romances, que acompanham o ritmo natural da vida e de nossas próprias emoções. Basta lembrar como o célebre escritor tcheco Milan Kundera, autor de “A insustentável leveza do ser”, descreveu o gênero literário que tanto cultivou. “O romance conhece o inconsciente antes de Freud, a luta de classes antes de Marx, pratica a fenomenologia antes dos fenomenólogos”, diz ele em “A arte do romance”. O editor da obra de Kundera no Brasil, Luiz Schwartz, resumiu o pensamento do autor ao evocá-lo recentemente em suas memórias: “por concentrar em si a sabedoria da incerteza, o romance é a forma mais profunda de conhecer o ser no mundo moderno”, disse.

Exemplos como esse ajudam a entender por que tantos leitores, ao longo de décadas, passaram a enxergar a vida de outra forma ao conhecer o juiz que protagoniza “A morte de Ivan Ilitch”, de Liev Tolstói, o tenente Giovanni Drogo, do célebre “O deserto dos tártaros”, de Dino Buzzati, passando pelo jovem engenheiro Hans Castorp subindo “A montanha mágica” de Thomas Mann, dentre tantos outros personagens que a literatura produziu e eternizou. E mesmo que alguém se queixe do tempo exigido por essas leituras, basta lembrar que elas apenas seguem nosso fluxo natural e humano, com seu período de semeio e cultivo – tendo ainda o diferencial de não desaparecerem após uma breve digestão, mas permanecerem conosco pela vida inteira.