(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
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Sthevo Damaceno

Mais real que a ficção

Mais real que a ficçãoWoody Allen tem uma comédia romântica maravilhosa, dentre tantas que escreveu e dirigiu. Trata-se de “A Rosa Púrpura do Cairo”, onde acompanhamos a saga de Cecília, uma humilde garçonete americana que, presa em um casamento difícil e conturbado, refugia-se indo ao cinema. E ali, vendo sua história predileta na telona, ela imagina como seria bom se aquele filme se tornasse realidade – e isso de fato acontece, com o protagonista literalmente saindo da grande tela para viver uma história de amor com a amável espectadora.

A sensação provocada por Woody Allen, embora divertida, não deixa de ser desconcertante. Afinal, como reagir à tamanha invasão da realidade por uma trama puramente fictícia? Como se comportar diante de uma situação típica da literatura fantástica? Quem viveu isso na pele foi o ilusionista americano Raymond Joseph Teller. No dia 3 de junho de 1997, precisamente às 14 horas, ele se postou no meio do Salão de Leitura do Museu Britânico, a fim de se encontrar com… um personagem literário de um século atrás!

Trata-se de “Enoch Soames”, criado pelo escritor inglês Max Beerbohm, que arrebatou milhares de leitores mundo afora (entre eles, os argentinos Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, que o incluíram na famosa “Antologia da Literatura Fantástica”). No conto, vemos a trajetória de Soames e seu desejo de alcançar a posteridade como um grande poeta. Mas, sendo apenas um autor obscuro em sua época (corria o ano de 1897), ele decide fazer um pacto maligno, vendendo sua alma por um desejo peculiar: ser transportado para dali a 100 anos, a fim de descobrir se sua obra resistira ao tempo e alcançara o sucesso. E eis que o desejo é atendido, fazendo Soames se dirigir para o ano de 1997, deixando os leitores em suspenso pelo desfecho da história.

De forma mais humilde, mas ainda assim desconcertante, também já tive meus encontros de cunho fantástico. Um deles foi rodando pelo interior de Minas Gerais, quando me vi próximo a uma boiada típica dos livros de Guimarães Rosa, como se os desenhos de Poty que ilustravam “Grande Sertão: Veredas” se transfigurassem diante dos meus olhos. Ao conversar com um dos sertanejos ali presentes, a sensação ficou ainda mais forte, já que sua sintaxe peculiar me remetia diretamente a Riobaldo, quase instigando-me a perguntar sobre Diadorim…

Houve, porém, um caso ainda mais assombroso, que envolve a estimada médica Dra. Laura Damian, já entrevistada algumas vezes pelo Mania de Saúde. Tudo começou com a leitura de “Os Detetives Selvagens”, obra-prima do escritor chileno Roberto Bolaño, onde acompanhamos um grupo de jovens que, comprometidos com a poesia de vanguarda no México dos anos 1970, desejam mudar os rumos culturais da América Latina. Na trama, eles evocam uma série de pessoas importantes para a história do grupo, incluindo uma jovem poeta há muito falecida, que marcara a vida dos protagonistas para sempre, a ponto de tornar-se o nome da principal honraria literária que eles aspiravam à época: o prêmio Laura Damian.

Isso explica a sensação aterradora que tive, certa vez, ao portar uma prescrição médica de Dra. Laura Damian e, de repente, em meio às tarefas do dia, abrir o papel e bater os olhos no cabeçalho, visualizando o nome de Laura Damian ali escrito e imediatamente me ver inserido no universo dos detetives selvagens, respirando os mesmos ares daqueles bardos “mexicanos perdidos no México”, a desbravar o deserto de Sonora em busca de um mistério inigualável. Mais um caso interessante para demonstrar como a vida, muitas vezes, confunde-se com a literatura, desafiando os limites da própria ficção.