(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br

Sthevo Damaceno

Bartleby e companhia

(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br

Sthevo Damaceno
BartlebyUm dos desafios mais comuns na vida de escritores mundo afora é a tentação de abandonar para sempre o hábito de escrever. É semelhante ao músico que, ao menos uma vez na vida, sentiu-se impelido a aposentar o instrumento e nunca mais dedilhar um acorde. Muitos, aliás, fazem isso, apesar do próprio talento… Mas de onde vem tamanha incompletude? Será que a imensidão de livros (ou músicas) se torna mais desestimulante do que inspiradora? Ou o medo de não alcançar o resultado esperado fatalmente resultaria em desistência? Questões dessa natureza levaram o autor espanhol Enrique Vila-Matas a empreender um dos relatos mais fascinantes da literatura contemporânea: “Bartleby e companhia”, publicado no ano 2000. No livro, Vila-Matas utiliza o espectro de Bartleby, o célebre personagem de Herman Melville, que se notabilizou pela inércia e por sempre evitar tarefas com o simples argumento de “preferir não fazê-las”. Demonstrando uma indiferença absurda para qualquer tipo de ação, Bartleby se tornou um dos personagens mais marcantes da literatura ocidental – e só mesmo um escritor hábil como Vila-Matas para investigar toda a genealogia de “Bartlebys” espalhados pelo mundo, apresentando escritores que, apesar de sua notoriedade, parecem desprezar a literatura e o próprio hábito de escrever. Mas embora o desprezo bartlebyano seja tão comum a muitos autores (chegou a atingir até mesmo o nosso Carlos Drummond de Andrade, que gostava de citar Paul Valéry, lembrando como os acontecimentos lhe causavam tédio), Enrique Vila-Matas não deixa de nos legar uma defesa memorável do ato da escrita. Foi quando o autor se deparou com um livro de Primo Levi, onde o escritor italiano retratava pessoas que enfrentaram campos de concentração, sobre as quais ninguém teria notícia se não fosse pela obra. “Levi diz que todos eles queriam voltar para suas casas, queriam sobreviver não só por instinto de conservação, mas porque desejavam contar o que haviam visto”, destacou Enrique. “Queriam que a experiência servisse para que tudo isso não tornasse a acontecer, procuravam narrar esses dias trágicos para que não se dissolvessem no esquecimento”. Segundo o escritor, isso acontece porque todos desejamos resgatar por intermédio da memória cada fragmento de vida que subitamente nos volta, por mais indigno, por mais doloroso que seja – e a única maneira de fazê-lo é fixá-lo com a escrita. “A literatura, por mais que nos apaixone negá-la, permite resgatar do esquecimento tudo isso sobre o que o olhar contemporâneo, cada dia mais imoral, pretende deslizar com a mais absoluta indiferença”, sentenciou Vila-Matas, deixando assim uma lição e tanto para quem ainda duvida do poder mágico da literatura – ainda que ela mesma possa, contraditoriamente, favorecer o surgimento de tantos Bartlebys.