(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br
No início dos anos 2000, quando ainda morava em Cimento Paraíso, vim a Campos dos Goytacazes com o único propósito de assistir a uma palestra do poeta Ferreira Gullar. Perdido em meio ao evento tumultuoso, acabei não vendo o poeta como gostaria. Quando enfim cheguei perto dele, Gullar já havia partido.
Esta, porém, não foi uma ocasião isolada: Gullar voltou a Campos outras três ou quatro vezes e, em todas elas, não pude estar presente, mesmo tendo a chance de fazer uma entrevista com ele. Não tardou para um grupo de amigos me chamar de idiossincrático, já que, apesar de todas essas oportunidades, não me importara em desencontrar-me do poeta.
(Caso desconheça o termo, não se assuste: idiossincrático vem de idiossincrasia, que é formada por dois elementos gregos: “idios”, significando algo “próprio ou pessoal”, e “synkrasis”, que designa “temperamento”. Quando dizemos que alguém é idiossincrático, estamos destacando características únicas e particulares daquela pessoa. Nem é necessário dizer, então, que o termo virou uma piada constante entre um grupo de amigos à época).
Para escapar dessas chacotas – que iam se avolumando cada vez mais – recorri à literatura. Afinal, muitos escritores não apenas conceberam personagens idiossincráticos (desde o Dom Quixote de Cervantes até o Bartleby de Melville), como também introduziram aforismos brilhantes sobre o assunto. Um dos meus prediletos é de Rubem Fonseca, que explicava sua reclusão afirmando: “sou um sujeito idiossincrático e idiossincrasias não se explicam”.
Mas é preciso dizer que a idiossincrasia, em si, não é um problema. Todo mundo, afinal de contas, tem lá suas peculiaridades… O que realmente surpreende é quando elas se acumulam com uma rapidez quase vertiginosa, pois aí sim adentramos o reino da literatura fantástica. Meu amigo Rogério Júnior, por exemplo, encarna isso muito bem.
Há poucos meses, ao abrir o celular, me deparei com uma pergunta dele, totalmente inesperada: “Conhece Murilo Mendes?”. Sim, claro, respondi. E, na sequência, enviei uma foto das obras completas do poeta mineiro, que ficam à minha disposição na estante. “Pois é. Estou na casa dele! Você já veio aqui alguma vez?”, questionou Rogério.
Confesso que a pergunta feita assim, sem nenhum prelúdio ou intróito, me transportou instantaneamente para um enredo quase cortazariano. Afinal, eu nem sabia que Rogério havia viajado, quanto mais que estaria na casa onde viveu… Murilo Mendes.
Foi impossível não imaginar o poeta ainda vivo, com seu ar hierático e modos eloquentes, abrindo a porta para Rogério com toda a pompa e circunstância, já que costumava tratar as pessoas exatamente como se falasse a um oficial de gabinete do senhor ministro da Fazenda, segundo célebre descrição de Otto Lara Resende. Mas não: Rogério simplesmente fora cumprir uma tarefa em Juiz de Fora e, ao olhar para o prédio vizinho, distraidamente, viu que estava diante da famosa Casa Murilo Mendes.
Mas o enredo não parou aí: pouco tempo depois, abro novamente o celular e vejo Rogério enviando-me fotos e vídeos de um elevador do início do século XX, uma porta em estilo art nouveau, janelas antigas, entre outros ambientes com móveis aristocráticos, dizendo: “isso é muito Mad Men”, referindo-se à clássica série norte-americana que tão bem retratou Nova York nos anos 1950 e 1960.
Cheguei a suspeitar de uma improvável viagem no tempo, mas eis que ele explicou a origem das fotos: acabara de se hospedar em um dos antigos prédios do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, onde se surpreendeu com a mobília preservada. Foi então que me veio à mente o óbvio ululante: aquele não era o prédio onde residira o poeta João Cabral de Melo Neto? Não seria aquele o mesmo apartamento sofisticado e antigo que João morou após se aposentar do Itamaraty?
Era só o que faltava: Rogério aparecer de forma abrupta na casa de Murilo Mendes e, semanas depois, surgir no último refúgio do autor de “Morte e Vida Severina”, que além de ser outro grande poeta de nossa literatura, foi também o maior amigo de Murilo Mendes durante sua estadia na Europa, quase uma dupla inseparável da poesia brasileira. Era surreal demais para acreditar.
“Não, estou em outro prédio, este aqui não é o do João Cabral…”, respondeu Rogério, após conferirmos algumas fotos pelo Google. Ainda bem. Idiossincrasias, de fato, não se explicam, mas até mesmo elas, por mais inexplicáveis que sejam, precisam ter limites.