(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
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Sthevo Damaceno

Salve o riso

Com a humildade e o bom humor dos grandes sábios, o jornalista Millôr Fernandes não se achava um grande humorista. “Sou apenas o sujeito mais engraçado da família mais engraçada da cidade mais engraçada do país mais avacalhado do mundo”, dizia ele, na sua Bíblia do Caos, a antologia definitiva de máximas e aforismos de um dos pensadores mais originais que já passaram pela nossa imprensa.
Lembrei-me deste volume dia desses, em meio à maluquice do tempo em que vivemos, quando, em uma rede social, me deparei com um vigilante do comportamento alheio recriminando um internauta por conta de uma piada, como se neste país fosse proibido pilheriar com alguma coisa – logo neste país! Foi quase impossível não evocar Millôr, quando dizia que o humor compreende até o mau humor, mas o mau humor é que não consegue compreender nada…
Acabou que fui pego de surpresa, nesse ínterim, por um processo verdadeiramente proustiano, quando lembrei-me dos tempos de faculdade, onde encabecei uma dissertação sobre as teorias do humor, cuja complexidade não vem a calhar numa crônica. Mas atenho-me, especificamente, ao teórico americano John Morreall, que elaborou algumas dessas teorias, com base na história da filosofia, área na qual é doutor e professor emérito em uma universidade estadunidense. Uma delas é a teoria da libertação de tensão, que se ocupa da função física e biológica do riso. A relevância dessa teoria, segundo Morreall, está em reconhecer o papel de alívio que pode desempenhar o riso. E há dois modos para fazê-lo. “A pessoa pode ter entrado na situação de riso com uma energia nervosa que será libertada ou a própria situação pode causar a formação dessa energia e também liberá-la”, escreveu ele.
Foi nessa hora que me lembrei de um dos escritores mais mal-humorados da literatura brasileira (ao menos no folclore ao seu respeito): Graciliano Ramos. Mais especificamente de suas Memórias do Cárcere, que ganhou uma bela reedição recentemente.
Apesar de ser um dos documentos mais lancinantes já escritos em língua portuguesa – um retrato cru e direto das agruras vividas pelo alagoano nas mãos do Estado Novo de Vargas – até mesmo no meio de todo aquele horror o riso explodia. Também pudera: Graciliano narrou, entre outras coisas, seu convívio com Apparício Torelly, o famoso Barão de Itararé, que marcara o humor brasileiro na primeira metade do século XX com suas impagáveis anedotas.
Na segunda parte do livro, Graciliano conta como Apparício descrevia a burocracia da cadeia e todo o sistema estadonovista, como se fosse um Kafka risonho, fazendo o próprio leitor rir em meio a uma narrativa dura e vigorosa, sem qualquer balela ou pieguice. Uma prova, nítida, de que a literatura transcende a nossa realidade. Assim como o próprio humor.