
Por estar sempre falando de livros, hora ou outra alguém me pergunta sobre um determinado autor, uma determinada obra, dentre outras questões literárias. Mas logo reparei que, na maioria das vezes, acabo sugerindo um título meio ofuscado pelos tempos modernos, embora seja capaz de destrinchá-lo como poucos: “
A Menina Sem Estrela”, de Nelson Rodrigues.
Bastava mencionar o nome do renomado dramaturgo, aliás, para logo ver o olhar de surpresa e incredulidade estampado no rosto dos interlocutores, que certamente preferiam ouvir sobre algum romance épico, um thriller psicológico, um best-seller do momento, mas jamais Nelson Rodrigues.
Para reverter preconceitos ou falsas impressões, o jeito era citar a máxima de Otto Lara Resende, para quem o livro continha “algumas das mais belas páginas já escritas em língua portuguesa”, transcendendo a mera reunião de crônicas para tornar-se um clássico da literatura nacional.
Tudo começou com uma série de textos publicados por Nelson Rodrigues no prestigiado Correio da Manhã, a convite do poeta José Lino Grünewald. O nome dado à coluna, depois de transferida para O Globo, não poderia ser mais premonitória: “Confissões”. Foi ali que Nelson começou a perfilar suas mais recônditas memórias, incluindo a pobreza experimentada na infância, a descoberta do sexo, a fama no teatro, as perdas familiares, além do nascimento da filha cega, a “menina sem estrela”, criando assim uma obra completamente distinta da nossa tradição literária.
Afinal, em cada uma daquelas crônicas, o autor realmente parecia estar em um confessionário, expondo todas as suas misérias afetivas e pessoais, sem se preocupar com o julgamento de terceiros – e muito menos de si próprio. Como Nelson mesmo dizia, era um “ex-covarde”, que de tanto sofrer na vida perdera o medo de dizer as coisas, por mais absurdas que fossem.
Mas não é só isso: ao evocar todas as figuras da infância e do passado recente, Nelson acabava revelando o humano em todas as suas facetas e dimensões, portando-se assim como um dos nossos grandes moralistas, no sentido literário do termo. Ou seja: mais do que um cronista, o que vemos em “A Menina Sem Estrela” é um notável observador da fraqueza humana, sabendo ser ela uma das principais fontes de mediação para nos situarmos no mundo.
Não é de se espantar que cada leitor acabe desenvolvendo um apego especial ao livro, como é possível constatar nas redes sociais, onde tantos fazem resenhas e divulgam trechos da obra. “A Menina Sem Estrela” é, de fato, o livro em que Nelson mais parece ter jogado tudo de si, legando-nos uma de suas maiores criações, um verdadeiro acerto de contas com a vida, já que “não há pior degradação do que viver pelo hábito de viver, pelo vício de viver, pelo desespero de viver”.