(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br
Quem tem o hábito da leitura certamente já viveu aquela situação de ter que viajar e, de repente, ver o espaço reduzido na mala, precisando decidir qual livro fica e qual livro vai. Se bem que hoje em dia há o Kindle, solução tecnológica bastante eficaz para os leitores mais compulsivos – mas, nos tempos analógicos, a situação era outra.
Em sua excelente “História da Leitura”, a propósito, Alberto Manguel lembra o caso de um grão-vizir da Pérsia, que carregava sua biblioteca pessoal toda vez que viajava, acomodando-a em quatrocentos camelos treinados para andar em ordem alfabética, sendo um dos relatos mais impressionantes da relação entre os seres humanos e os livros. Fico imaginando este sujeito na máquina de H.G. Wells, viajando no tempo a ponto de ver toda a sua biblioteca armazenada em um dispositivo portátil, menor que a palma da mão, livrando-o de todo aquele trabalho homérico.
Mas não precisamos ir tão longe: certa vez, transitando pela Bahia, fui vítima de um autêntico perrengue literário, pois acabei concluindo algumas leituras mais rapidamente do que havia previsto.
Além de ter levado poucos volumes, foram muitas horas de deslocamento entre cidades diferentes, acrescidas do necessário descanso em quartos de hotéis. Quando percebi, já estava órfão do último livro – e cabe dizer que os smartphones inexistiam naquela época. O jeito era me conformar, relendo um capítulo ou outro, porém a falta de outros livros, tão presentes em meu dia a dia, já me deixara desassossegado.
Mas eis que, andando por Trancoso, milagrosamente encontrei uma livraria, depois de semanas procurando em vão qualquer rastro de sebo. Nem bancas, aliás, cheguei a encontrar ao longo daquele período. Mas fui recompensado, pois o acervo da livraria era fabuloso, quase uma miragem, considerando a escassez de livros pelos lugares onde eu estivera.
Tanto que mal recordo o nome do estabelecimento ou os rostos dos simpáticos atendentes: logo passara a escarafunchar todo aquele acervo, embasbacando-me com a quantidade de livros recém-lançados, bem como edições clássicas – e algumas raras – dos autores de minha predileção.
Até que, imergindo naquelas obras, folheando mais de uma ao mesmo tempo, mal me dera conta do burburinho ao meu redor, nem das batidas no ombro que sofri de alguns circunstantes. O motivo era Bruna Lombardi, que surgira ali de forma inesperada, como uma rima de Mario Quintana.
Mas só vim a perceber isso muito tempo depois: imerso nos livros, não atentei para a presença famosa ao meu lado, folheando volumes diferentes, atendendo uma pessoa ou outra – eu só conseguia mesmo era contemplar toda aquela pilha literária, depois de dias e dias sem literatura, até enfim me decidir por um título, numa ânsia digna de um heterônimo pessoano.
Só após me dirigir ao caixa é que, enfim, me interpelam: “Bruna Lombardi o tempo todo do seu lado e você nem cumprimenta! Que livro é esse que prende tanto a atenção de alguém assim, meu Deus?”.
Como resposta, mostrei a capa: Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, edição de luxo. Ouvi de volta apenas um irônico “tá explicado!”.
E muitos risos, evidentemente.