(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br

Sthevo Damaceno

Você é você mesmo ou o outro?

(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br

Sthevo Damaceno
O que você diria se, de repente, encontrasse uma versão mais jovem de si mesmo, sentada em um banco do passeio público, como se fosse apenas outra pessoa qualquer? Afora o espanto, teria coragem de se aproximar? Cumprimentaria? O exercício é fantasioso, claro. Mas, justamente por isso, tornou-se um dos mananciais mais explorados na história da literatura. O tema do duplo, como se sabe, está presente na obra de inúmeros escritores, tendo virado praticamente uma tradição literária, sobretudo por esmiuçar as diferentes concepções da natureza humana. Impossível não lembrar, por exemplo, dos famosos Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson, que eternizou a metáfora da dupla identidade no clássico publicado em 1886. Quatro anos depois, Oscar Wilde publicava “O retrato de Dorian Gray”, que também aborda esse conflito, por meio de um aristocrata que busca a juventude eterna, enquanto seu retrato envelhece em segredo. Outro clássico dessa natureza é “O Duplo”, de Dostoiévski, onde o protagonista, Yakov Golyadkin, encontra uma cópia exata de si mesmo, vendo ameaçada não só a própria identidade, mas sobretudo a sanidade – o que nos leva a José Saramago e seu “O Homem Duplicado”, onde um professor de história reconhece um sósia por meio da televisão, servindo de mote para discutir a perda de identidade no mundo moderno. (Já que paramos em Portugal, fica irresistível citar Fernando Pessoa e seus mais de 136 heterônimos, mas isso precisaria de um capítulo à parte, caso houvesse um cronista mais competente andando com meu nome por aí…). Os exemplos, como se vê, são inúmeros, mas confesso ter uma especial predileção por um texto bem mais simples e despretensioso, porém com uma profundidade dramática e metafísica equiparável a qualquer outro clássico da literatura. Trata-se de “O Outro”, conto que abre “O Livro de Areia”, do mestre argentino Jorge Luis Borges. No texto, o poeta narra uma breve passagem sua por Cambridge, ao norte de Boston, em fevereiro de 1969, quando sentou-se em um banco defronte ao rio Charles, onde teve a impressão de já ter vivido aquele momento. Eis que Borges de repente olha para o lado e vê um jovem sentar-se no polo oposto, assoviando uma melodia logo reconhecida pelo velho escritor. Ele se aproxima daquele indivíduo e, assombrado, percebe que está diante de ninguém menos do que o adolescente Jorge Luis Borges, que se encontrava sentado diante do rio Ródano, em Genebra, no ano de 1918. Inicia-se então um diálogo assombroso entre os dois, já que ambos não conseguem enganar um ao outro e testam diferentes maneiras de saber se aquilo não passava de um sonho. Ao ouvir aquele garoto falando do passado como se fosse presente, o velho Borges não deixa de revelar um pouco do futuro ao jovem que ainda iria envelhecer, propondo a ele de se encontrarem novamente no dia seguinte, “naquele mesmo banco que está em dois tempos e em dois lugares”. O reencontro, claro, não acontece, mas a forma como o mestre argentino expôs seus traços mais particulares neste conto – desde a confessada fragilidade existencial até o estoicismo resoluto diante da cegueira – faz deste relato uma de suas criações mais sensíveis e memoráveis, estando sempre presente nas inúmeras antologias dedicadas ao escritor. O texto acabou me remetendo a um amigo de faculdade, a quem apresentei o livro certa vez. Perguntei a ele o que faria se passasse pela mesma experiência. Que conselhos daria ao jovem que um dia você foi e jamais voltará a ser? “Daria vários, talvez. Mas, no fundo, pediria apenas que não deixasse de compartilhar, com os outros, um pouco de sua luz”.