(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br
Recentemente, a apresentadora Carolina Ferraz viralizou na internet com um vídeo intrigante. Perguntada por uma internauta sobre o que havia feito naquele dia “para ser uma pessoa melhor”, Carolina decidiu bloquear a seguidora e desabafou sobre a “positividade tóxica” que permeia as redes sociais. “Esse povo que fica fazendo ‘coaching’ da alegria é muito irritante, essa positividade tóxica é muito chata”, disse.
O desabafo da apresentadora logo recebeu uma enxurrada de elogios dos mais diversos seguidores, que também se identificaram com a situação. Afinal, Carolina proclamara o óbvio ululante, conscientizando o público sobre a necessidade de entender e respeitar as próprias emoções, digerindo os fatos da vida em vez de projetar sobre eles um falso otimismo. A arte, inclusive, pode ser um bom antídoto para o problema.
A queixa da apresentadora me fez pensar, por exemplo, em Manuel Bandeira. Talvez muitos não saibam, mas, quando o famoso poeta pernambucano estava prestes a fazer o curso de arquitetura que tanto sonhava, no auge dos seus 18 anos, foi acometido pela mais temida das doenças da época: a tuberculose. O sonho logo desaparecera, já que a enfermidade dominou a rotina do poeta e da família durante cinco anos, provocando incontáveis crises de febre e hemoptise. O poeta chegou a passar 15 dias cuspindo sangue, como destacou seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa.
“Na falta dos antibióticos e sem os recursos de hoje, a tuberculose exigia humildade para a cura. Desde o primeiro impacto, Manuel conformara-se com a moléstia, para ir dominando-a paciente e lentamente através dos anos. Havia sempre um meio de vencer a indolência e superar a sensação de inutilidade: ler muito”, escreveu Francisco.
A decisão, claro, foi acertada: apesar de ter se preparado tanto para a morte, Bandeira viveu até os 82 anos, tendo construído a mais elevada trajetória poética no Brasil, na opinião de Carlos Drummond de Andrade. Nela, vemos um verdadeiro mestre do lirismo, com textos repletos de delicadeza e humor, ao contrário do sofrimento que tanto perseguiu o poeta na juventude. “Uns tomam éter, outros cocaína / Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria”, versou Bandeira, na abertura do seu clássico “Libertinagem”.
Embora não tenha sofrido da mesma moléstia, Ferreira Gullar foi outro caso emblemático de uma vida aparentemente contrária à poesia. Vindo do Nordeste e lutando para se firmar na imprensa carioca, o poeta se viu obrigado a ir embora do país após o golpe de 1964, devido a um mero erro burocrático, deixando para trás a mulher e os filhos. Os detalhes completos dessa aventura estão em seu extraordinário livro de memórias, “Rabo de Foguete”, uma obra que o crítico Ivan Junqueira avaliou como uma das narrativas mais desoladas e sombrias já escritas no Brasil.
Ali, vemos todo o relato da fuga do poeta para a União Soviética, onde ficou até seguir para Santiago do Chile, sendo quase capturado pelos militares durante a queda de Allende. Mas uma das experiências mais traumáticas ocorreu na Argentina, onde sua situação familiar chegou ao limite: além das dificuldades financeiras e conjugais, um dos filhos de Gullar sofria de esquizofrenia e fugiu de casa, desaparecendo por meses. Isso tudo estando ele longe de casa, dos amigos, com militares ao seu encalço e a eterna sensação de que iria morrer.
Dessa experiência, porém, nasceu o célebre “Poema Sujo”, sua obra mais famosa, que transfigurou o aparente último sopro de vida do poeta numa das mais incríveis façanhas de nossa literatura.
Gullar estava certo. “A arte é pura alquimia. Transforma o sofrimento em alegria”.