Nosso Brasil brasileiro

(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br

Sthevo Damaceno
2022 está chegando ao fim e já pode ser visto como um dos anos mais turbulentos da nossa história. O país está polarizado, o ambiente político e social continua em estado de apreensão e a expectativa quanto à economia ainda divide os comentaristas. Por outro lado, o país enfim vive um estágio pós-pandemia, que aqueceu os mais diferentes setores de negócios, gerando uma retomada até mesmo do ramo do entretenimento, com shows e festivais de música acontecendo por todo o país. Mas, em que pese a sanha de tantos analistas em criar os mais diferentes (e, às vezes, tresloucados) diagnósticos para o futuro, mais vale olhar para o passado e seguir o preceito de Edmund Burke, para quem “um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la”. Afinal, como versou T. S. Eliot, o tempo presente e o tempo passado estão ambos talvez presentes no tempo futuro – e o tempo futuro contido no tempo passado. Se repararmos bem, aliás, veremos que não se trata de um mero jogo de palavras de ambos os escritores. Basta nos atermos ao 22º ano deste século, ou nas duas primeiras décadas em si, para traçar um bom paralelo, comprovando que Burke e Eliot foram muito além de uma simples conceituação verbal para, de fato, explicar a postura de uma nação diante de sua história. Quem leu o excelente “Metrópole à beira-mar: O Rio moderno dos anos 20”, um dos melhores livros do jornalista e biógrafo Ruy Castro, por exemplo, certamente se espantou ao ver como os fatos desenrolados nos anos 1920 parecem se conectar com os dias de hoje. A começar pelo início do livro, onde Ruy descreve a chegada da gripe espanhola, que dizimou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo. “A morte em massa começou a gerar consequências que ninguém podia controlar. Sem leitos suficientes nos hospitais da cidade, os doentes eram amontoados no chão das enfermarias e nos corredores. Muitos morriam antes de ser atendidos. Os hospitais foram fechados às visitas e, nos enterros, só se permitia a presença dos mais próximos (…). Através dos jornais, que continuaram a circular mesmo que reduzidos a poucas páginas, a população era aconselhada a evitar os trens, bondes e ônibus — que andasse a pé, se pudesse. Rogava-se que ninguém tossisse, espirrasse, cuspisse ou se assoasse em público — inútil, porque, já então, a cidade era uma tosse em uníssono. As aglomerações foram desestimuladas e, com isso, a vida desapareceu: fábricas, lojas, escolas, teatros, cinemas, concertos, restaurantes, bares, tribunais, clubes, associações, até bordéis, tudo fechou”, descreveu Ruy. Alguma semelhança com o Brasil recente? Pois é. Mas não termina aí. Ao desenhar um panorama do Rio daqueles tempos (lembrando que a metrópole era a nossa capital federal e praticamente ditava os rumos da cultura brasileira), o jornalista mostra como o país saiu daquela brutal epidemia para logo viver um turbilhão de transformações políticas, sociais e culturais, que resultaram, entre outros eventos, na Semana de Arte Moderna. Foi um tempo em que o Brasil sofreu uma profunda alteração em seu tecido social, gerando inúmeras mudanças de comportamento na sociedade, além de infundir uma incerteza homérica quanto ao futuro. Lendo a grande obra de Ruy, no entanto, fica mais transparente a resiliência e a criatividade do povo brasileiro, que, do drama político mais complexo até o carnaval mais efusivo, não sucumbiu ao caos, atestando sua perene capacidade de se reinventar. Trata-se de uma boa leitura não apenas para entender o nosso passado, como também para saber se, de fato, podemos nos tornar o tão sonhado país do futuro, como queria Zweig. Em tempo: um feliz 2023 para todos nós.