Fui desmascarado. Nunca pensei que, a essa altura da vida, com minhas retinas tão fatigadas, haveria um flamenguista no meio do caminho. No meio do caminho tinha um flamenguista. Tinha um flamenguista no meio do caminho…. Bem, o fato é que, depois de muitos anos sem me propor a isto, saí à rua com uma camisa do Vasco da Gama – time de família, ao que me consta – até receber um tapa no ombro de um amigo flamenguista dos tempos de escola, que não raro me via com a camisa… do Flamengo!
Mas, antes que eu conquiste a antipatia de ambas as torcidas – se é que já não tenha conquistado – explico-me: naquele tempo, meu apreço por qualquer clube esportivo certamente era menor do que o desejo por uma boa galhofa, como convém ao jovem imberbe que eu era, a ponto de escandalizar a escola ao propor à professora – e futura diretora – um pacto intrigante.
Depois de ela aparecer com a camisa do Flamengo por conta de uma vitória em final de campeonato, interrompi a aula e propus uma aposta: se no jogo seguinte o vencedor fosse o Vasco da Gama, ela iria com a camisa do gigante da colina. Ganhando o Flamengo, seria eu a usar o manto rubro-negro.
Mal sabia a Rosa que meu intento não era nada esportivo: queria era mostrar que o rigor dela ao cobrar nosso uniforme escolar a cada aula não era tão grande como sua sisudez parecia crer… Tomada pela emoção da vitória, ela aceitou o desafio de pronto, mas, sem dúvidas, não esperava que seu amado Flamengo fosse perder de 3 a 0…
Impossível esquecer aquela horda de alunos chegando mais cedo só para se certificar de que a Rosa iria aparecer com a camisa do Vasco. Mas não só apareceu, como fez todo mundo ficar em silêncio, proibindo qualquer manifestação oral, sob pena de expulsão sumária. Certamente foram os 45 minutos mais sofridos para uma professora do interior do interior do Brasil.
Mas justiça seja feita: no embate seguinte, o Flamengo venceu e, renovada a aposta, não apenas cheguei com a camisa rubro-negra, como Rosa me presenteara com outra, impelindo-me a ser flamenguista. Fiquei maravilhado. Pena, obviamente, que não durou um dia: bastou passar pelo bar da minha esquina, repleto de vascaínos, para ser obrigado a tirar a indumentária.
Bobagem, evidentemente. Se o futebol é a coisa mais importante das coisas desimportantes, como disse um técnico italiano, o afeto em torno dele, para mim, vale mais do que qualquer rivalidade. Impossível, por exemplo, não lembrar dos muitos amigos tricolores, botafoguenses e flamenguistas, pelos quais já torci em diferentes jogos, meramente por ver, neles, a paixão pelas quatro linhas que eu de fato nunca tive.
Isso me fez lembrar uma verdadeira legião de afetos do passado que, infelizmente, já se foram, mas que torciam pelo clube cruz-maltino com um afinco que jamais vi igual. Minha infância é tomada por uma horda de vascaínos a qual nunca mais vi se repetir, em lugar nenhum, o que tornava o clube onipresente em minha história.
Tanto que é impossível, hoje, ver ou usar uma camisa do time e não me lembrar de figuras como Monteiro, Flavinho, Maguinho, Cida, Higor e tantos, tantos outros amigos, parentes e conhecidos, cuja única alegria parecia ser a vitória do Vasco, bem como a presença dos afetos em volta.
A cruz vermelha costurada no peito pode ter um significado bem maior para os amantes do futebol e do próprio clube carioca. Mas, para mim, é algo um pouco mais modesto: talvez seja apenas uma forma, singela, de trazê-los de volta. No fundo, parafraseando Ferreira Gullar, eu torço pelos meus mortos:
os mortos veem o mundo
pelos olhos dos vivoseventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventaniasAusentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça.