Arte que une duas grandes ciências

Arte que une duas grandes ciências
O médico especialista em clínica médica Dr. Cláudio Cola

No dia 07 de abril de 1886, com a aprovação da lei nº 18, o então presidente da província de São Paulo, o Conselheiro João Alfredo Correa de Oliveira, oficializava a perícia médica no Brasil. Essa data passa, então, a ser reconhecida como o Dia do Médico Legista. Mas você sabe como a história chegou a esse marco?

Nossa reportagem conversou com o médico Dr. Cláudio Cola, que atuou como médico legista por 30 anos e ainda atua como perito para a Justiça Federal. Ele nos conta um pouco sobre essa atuação. “A história da Medicina é repleta de fatos curiosos e marcantes, como a descoberta da penicilina, da radiografia, e continua a ser escrita a cada dia com cada novo avanço ou tecnologia que surge e, quando completamente comprovado, passa a ser incorporado à prática médica. No entanto, um dos capítulos mais emocionantes da trajetória médica, sem dúvida, é quando essa interage com a história do Direito. Desde muito cedo, à medida que a sociedade humana se estabelece, surge a necessidade do estabelecimento de regras e costumes, visando alcançar a chamada ‘ciência do conviver’, assim como é preciso escolher ou identificar aqueles que vão zelar por estas, e assim surge o Direito, como um ramo da história social, permeada de vários relatos e documentos relacionados às diversas culturas e com claros registros de constantes adaptações destes à medida que a sociedade também constantemente se transforma”, disse.

Mas como a sociedade se portava quando os conflitos de convivência levavam a questões médicas? Como esses conhecedores das leis e regras, primeiros doutores da ciência moral, que não dominavam a também incipiente ciência médica, poderiam adequadamente julgá-las? O médico responde. “Desta forma singular e apaixonante, surge então, no nascedouro destas duas ciências, a interseção entre elas: a Medicina legal, não como uma terceira ciência, mas sim como uma ponte, que faz a Medicina se voltar, se interessar, se empenhar e se motivar a atender às necessidades de todas as demandas do Direito que precisem de informações médicas”, afirma Dr. Cláudio. “Essa história é tão bonita quanto antiga e, desde a antiguidade, independente da civilização, já se tem conhecimento de registros de tal interação, como no Código de Hamurabi, do século XVII a.C, a mais antiga legislação penal de que se tem notícia, que já determinava a intervenção do médico para confirmar se um escravo adoeceu antes ou depois de ser vendido. No entanto, o registro histórico que talvez mais chame a atenção é que a primeira citação documental de uma necrópsia de uma vítima de homicídio seria o do, nada mais, nada menos, ditador romano Júlio César, morto em 15 de março de 44 a.C, atacado a facadas, de emboscada na escadaria do senado romano, por sessenta de seus senadores, e o exame necroscópico realizado por Antístio, médico e amigo de Júlio César, identificou a existência de 23 golpes de adaga, sendo apenas um deles mortal, ou seja, como o autor deste golpe mortal não foi identificado, nenhum dos agressores pôde ser punido”.

Dr. Cláudio fala, também, sobre essa atuação em nosso país. “No Brasil, essa história é igualmente interessante e, passando por um período inicial de influência direta da Europa, surge a chamada nacionalização da Medicina Legal com a publicação datada de 1814, onde Gonçalves Gomide, médico e senador do Império, contesta parecer de outros dois médicos, interpretando pela primeira vez a legislação brasileira a partir de conhecimentos médico-legais da época, obtendo tanto reconhecimento que foi nomeado responsável pelo ensino prático da disciplina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e por isso considerado pioneiro em Medicina Legal em nossa pátria. Com isso, à medida que as faculdades de medicina vão se instalando no país, recebem alunos de todos estados, e surgem médicos apaixonados pelo universo médico legal, que, quando voltam aos seus estados de origem, fundam centros de estudos médico-legais, e estes, depois de reconhecida importância e contribuição para o reconhecimento da atividade, são incorporados pelos poderes estaduais, e transformados nos Institutos, passando a receber, merecidamente, o nome destes pioneiros, como o Instituto Médico Legal Oscar Freire e o Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, respectivamente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Depois de toda essa viagem no tempo, fica claro que, como dito por Genival França, a medicina legal é uma Ciência, pois sistematiza seus conhecimentos (especialidades, técnicas e métodos) para um objetivo determinado, mas também é Arte, porque requer qualidades instintivas para demonstrar, de forma significativa, a sequência lógica do resultado dramático de uma lesão naquilo que configure uma demanda do direito. A magia dessa interação é fascinante porque, como muito bem define o nobre catedrático, a medicina legal cria dois contextos muito distintos de atuação médica: enquanto o médico especialista deve usar conhecimentos médicos para diagnosticar e tratar, a peculiaridade da função de médico perito é justamente ter a sensibilidade de identificar a necessidade do direito naquela demanda, e, sempre fundamentado nos mesmos conhecimentos, técnicas e métodos, trazer, de forma objetiva e racional, o esclarecimento necessário”.