(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br

“Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/ Porque apesar de muito moço/ Me sinto são e salvo e forte”. Ver e ouvir esses lendários versos do cantor Belchior sendo entoados por tantos jovens, depois de regravados por diferentes artistas contemporâneos, não deixa de ser satisfatório, mas sempre me traz uma certa melancolia, por remeter a todas as nuances que levam um artista da glória ao esplendor, sobretudo quando somos íntimos de sua obra.
Lembro-me com perfeição da última vez em que vi o cantor em cena, antes do autoexílio que chocou o país. Foi em uma festa interiorana, onde Belchior apresentou seu tradicional show de voz e violão, acompanhado de outro músico. O contraste era gritante: enquanto no palco o bardo percorria todas as suas grandes composições, estruturadas na base acústica que remetia ao gosto ibérico que lhe era peculiar – sobreposta por uma potência vocal a que poucas vezes vi tão límpida e vigorosa –, não mais do que quinze pessoas assistiam ao espetáculo, diante de um palco minúsculo, enquanto os outros que foram ao evento preferiram circular por espaços distintos, alheios à preciosidade que ali irradiava. A apresentação foi tão brilhante para aquelas poucas pessoas que assistiram que, já em casa, ainda de madrugada, não me furtei a colocar as músicas para tocar, ainda inebriado com o que havia assistido horas antes. O que não sabia era que, poucos meses depois, Belchior daria início à fuga que espantou o Brasil, enquanto eu tinha a sensação de ainda não ter voltado daquele show. Acho que não voltei nunca mais.
O fato é que Belchior já era um nome grandioso lá em casa, em tempos onde ainda ouvíamos fitas K7. Para o pré-adolescente de então, era uma grata surpresa ver um grande nome da MPB que passeava também pelo rock, misturando vários timbres e ritmos, “entre o sonho e o som”, enquanto aludia aos mais diferentes autores do cânone ocidental, fosse na prosa ou na poesia. Era incrível ver um artista tão popular, de letras tão comunicativas e diretas, mas temperadas por um toque erudito e sofisticado, que permeava alusões a Olavo Bilac, Dante Alighieri, Erasmo de Rotterdam e outros, muitos outros.
Mas não demorou muito para aquele canto torto, feito faca, cortar a carne de forma diferente. Só quando abandonei minha terra natal para fazer a vida é que os versos de Belchior ganharam ainda mais sentido. Quem passou por experiência semelhante, ainda que não nordestina, sabe muito bem como aquelas canções passam a ter novos relevos, como se falassem diretamente conosco, na interlocução atemporal celebrada por Whitman, uma das grandes leituras de Belchior.
Lembro-me também que, por essa época, nosso amigo Avelino Ferreira (sempre ele!) tentou de alguma forma trazer o cantor para a cidade, mas já era tarde: o autoexílio já começara. Sylvio Muniz, fundador do nosso mensário, também tivera o mesmo intento, mas logo percebera que a busca seria em vão.
Hoje, porém, temos a chance de entender todo esse percurso não apenas por meio do belo retrato feito por Jotabê Medeiros, em seu livro “Apenas um rapaz latino-americano”, mas também pelo road-movie da fuga belchiorana, excelentemente retratada por Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti no livro “Viver é melhor que sonhar: Os últimos caminhos de Belchior”, que valem muito a leitura.Em que pese todas as razões que lá estão para (tentar) entender a guinada de Belchior em seu sumiço, resta mesmo é celebrar sua obra tão original, especialmente em um mundo prenhe de intrigas e superficialidades. “Amar e mudar as coisas interessam mais”, dizia ele, que, mesmo tendo passado os últimos anos de vida em tom de fuga, sempre se despedia dos interlocutores com uma frase lapidar, talvez um grande resumo de sua obra: “Abraços e canções”.