(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br
Nunca imaginei que, justamente agora, no final de 2021, veria a Jovem Guarda fincando raízes no coração dos mais novos. O fato aconteceu em uma das poucas livrarias da cidade, o que o torna ainda mais surpreendente.
Enquanto folheava alguns poetas, desses que vivem na sombra, um anjo torto soprou em meus ouvidos a bela melodia de “Coração de Papel”, música que inaugurou a carreira de Sérgio Reis e se tornou um clássico daquele movimento. Mas logo percebi que aquele rastilho melódico não era fruto da imaginação: ele vinha de uma das fileiras da livraria, onde alguns jovens a cantavam em coro, felizes e afinados, como se entoassem um sucesso do K-pop coreano, ícone da juventude de hoje. O desconcerto foi enorme. Como podiam conhecer aquela música já aparentemente tão esquecida e por que a cantavam com tamanho deleite?
Pode ser que estivessem cumprindo apenas um trabalho escolar (ou mesmo, quem sabe, entoando alguma versão mais atual da música), mas foi bonito me deparar com aquela cena, sobretudo por ver tantos jovens valorizando uma bela canção, em vez de estarem com os olhos grudados ao celular.
Não muito tempo depois, curiosamente, esse desconcerto ganhou outros contornos, quando “Alegria, Alegria” foi executada na televisão. Isso porque, depois de cantá-la por completo, minha mulher lembrou o óbvio ululante: “não é curioso que nossos sobrinhos desconheçam essa música, quando, no fundo, ela fez parte do imaginário de tanta gente por décadas, inclusive nós mesmos?”. De fato: mostrei a canção aos nossos sobrinhos e eles nunca haviam escutado! Não é surpreendente imaginar que o maior sucesso do Caetano é inteiramente virgem para muitos das novas gerações?
Mas, em que pese o contraste entre esses dois exemplos, talvez as mudanças geracionais não sejam tão grandes assim. A literatura é um bom indicativo. Basta lembrar o dia 31 de outubro, o famoso Dia D, o Dia de Drummond, onde o poeta costuma receber homenagens em escolas do país inteiro, mas especialmente nas redes sociais, onde internautas postam seus versos preferidos ou selfies com os livros de que mais gostam, a fim de celebrar o aniversário do escritor. Não é bonito ver o gosto pela obra do itabirano indo muito além das leituras de vestibular, em tempos onde aparentemente pouco se lê?
Também pudera: além do texto límpido e cativante, que sempre desperta interesse entre os jovens, Drummond possui aquela dimensão metafísica que parece decifrar a tal “máquina do mundo”, dando chaves essenciais para o entendimento de tudo aquilo que é o humano. Lembro-me das palavras do cronista e cineasta Arnaldo Jabor, no célebre “Dossiê Drummond”, de Geneton Moraes Neto, onde tece grandes comentários sobre o poeta mineiro.
Ele lembra que, na divisão entre o empírico longínquo e o mundo real, Drummond mostra que o mistério se localiza nas coisas, pois tudo é feito de um gás a que a gente dá o nome de matéria. “Quando lemos Drummond, vemos a energia que se esconde atrás das portas, dentro das pedras, nas mãos, nos objetos. Drummond tem qualquer coisa de extremamente místico na poesia. Um misticismo que perpassa no meio da cotidianidade”, afirma Jabor, para quem o poeta parecia, de fato, decodificar a existência, fazendo eco com o psicanalista Hélio Pellegrino, que dizia não conseguir se compreender sem levar em conta a poesia de Drummond. “Essa poesia é uma das chaves de mim mesmo”, dizia Hélio, que ressaltava como Drummond tinha poemas e versos lapidares para cada situação de nossas vidas.
A propósito, o poeta tem palavras bastante expressivas para o período em que estamos vivendo. Basta lembrar a sua “Receita de Ano Novo”, que vem a calhar neste momento em que despedimos de 2021, com a esperança de um 2022 ainda melhor:
“Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre”.
Boas festas a todos!