Livre-se desse medo!

(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br

Sthevo Damaceno
Nos últimos tempos, se passaram muitos anos… Essa ótima tirada do Rubem Braga, o sabiá da crônica, parece encarnar um sentimento muito comum a todos nós, não é mesmo? Várias vezes achei que ela fosse do Nelson Rodrigues, outro que também vivia se mesmerizando com a passagem do tempo. Pois vejam vocês que, cerca de 10 anos atrás – embora pareça que foi ontem – estive na casa do nosso Avelino Ferreira, jornalista, escritor e intelectual que, na faculdade, nos instigava a ler sempre o dobro do que líamos, quando estarreci diante de sua biblioteca pessoal. Ela era repleta de volumes aos quais eu apenas ouvia falar, abarcando desde a mais alta filosofia ao melhor da literatura nacional e estrangeira, em poesia e prosa. Com o olhar típico do educador que sempre foi, Avelino me incitou a escolher algum daqueles volumes e, mesmo diante de coleções impecáveis e clássicos que eu conhecia apenas de nome, acabei optando por um livro sobre o Ferreira Gullar, que provocou um susto gigantesco no anfitrião: “Com tantos livros aí e vai logo no Gullar? Você já o conhece como ninguém! Só pode ser brincadeira…”. Grande Avelino! Essa história me diverte quando vejo alguns perfis famosos de literatura nas redes sociais, que vivem recebendo dúvidas de jovens estudantes ou universitários, cujos depoimentos parecem reverenciar demais alguns livros e autores, sempre querendo ler mais sobre eles do que lê-los de fato, como se fosse dificílimo ou quase impossível ser íntimo de um James Joyce ou de um Fiódor Dostoiévski. É um desafio, inclusive, para muitos pais e educadores que tentam introduzir a leitura entre a rapaziada. Evidentemente, há obras que apresentam determinado grau de dificuldade, mas isso não apaga o fato de que a literatura é um objeto de foro íntimo, como dizia o Mario Quintana. É assim com vários tipos de arte, não é mesmo? Ninguém saberá o que é jazz sem ouvi-lo. Ninguém saberá quem foi Dostoiévski sem lê-lo. Isso me remete àquela história com Avelino, já que o Gullar (para especificar apenas um poeta) fez parte da minha vida desde a juventude, quando ele era apenas um nome em alguma canção de adolescência ou figura bissexta na TV. Até que pude me deparar com sua obra na biblioteca escolar e, depois, na faculdade, onde ela passou a fazer todo o sentido para aquele jovem em formação que eu era. Logo o maranhense deixou de ser a figura do autor consagrado para tornar-se quase um pai, um tutor, um amigo, um companheiro de vários momentos, um irmão que eu desejava conhecer e ouvir, dissesse o que dissesse. Ele saiu dos livros para se tornar alguém tão próximo quanto qualquer pessoa de meu convívio, estando presente em minha vida há muitos anos. Esse tipo de relação acaba se tornando muito comum na literatura quando não há temor diante dela. Quem se torna íntimo dos livros, por exemplo, dificilmente se refere a escritores pelo nome completo, mas apenas como o Vinicius, o Drummond, o Dante, o Neruda, o Gabo, o Graça, o Bandeira, o Sabino, o Rosa e por aí vai. Aliás, o próprio Rosa dizia que os livros eram sua maior aventura. Sendo uma aventura, que podemos acompanhar de perto em posição privilegiada, nada mais natural então que ela faça parte da nossa vida e crie raízes em nós. É fato que todo o debate sobre leitura no Brasil é complexo e possui inúmeras vertentes, mas talvez um grande caminho para incentivar os jovens seja fomentar essa intimidade com os livros, dessacralizando a literatura para vê-la como uma companhia, não como um monumento inalcançável ou mesmo uma esfinge. Talvez assim seja mais fácil decifrá-la, em vez de ser devorado pelo medo que tantos nutrem por ela.