(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br

Sthevo Damaceno

Retrato dos tempos

(*) Sthevo Damaceno é jornalista e
editor do jornal Mania de Saúde.
sthevodamaceno@maniadesaude.com.br

Sthevo Damaceno
Cultura do cancelamento, fake news, pós-verdade… a lista de termos e expressões que vêm se agregando a nossa rotina ao longo da última década daria um bom dicionário, se eles ainda existissem. Dia desses, aliás, vi um sujeito engravatado na 13 de maio envergando… um Houaiss. Um Houaiss! E do modelo grande, de capa dura, com a inconfundível logomarca do grande filólogo. Isso em 2021, vejam vocês. Não fosse a pressa, teria perguntado ao sujeito o motivo da façanha. Mas o fato é que nem precisaríamos ser filólogos para nos acostumarmos com tantas terminologias, não é mesmo? Afinal, elas abundam a cada notícia, giram pelas timelines, entram pelos nossos ouvidos mesmo que não percebamos. Ainda assim, acreditem, há quem me cobre opiniões sobre esses e outros termos da atualidade, como se fossem os únicos assuntos possíveis no mundo de hoje. Peço escusas à plateia, mas ainda estou nos gregos, como diria o Drummond. Platão tem muito mais a dizer do que um bocado de lives políticas e engajadas que poluem nossos smartphones todos os dias. Inclusive, acho engraçado me deparar com programas de TV e internet dedicando tempo e espaço à famosa “cultura do cancelamento”, como se a censura dessa ou daquela patota fosse alguma novidade na história do mundo. Muitos menos no Brasil, onde, durante o Período Colonial, a atividade editorial era proibida, enquanto, até o século XIX, a censura rolava solta e muitos livros precisavam de autorização para serem publicados, não raro sofrendo campanhas públicas pelos seus detratores. Quer cancelamento maior do que proibir a circulação de ideias? Vide o caso de Raimundo Correia, que foi aconselhado a não mais escrever, se quisesse ascender na magistratura, como demonstra o estudo “A censura no Brasil do século XVI ao século XIX”, de Agnaldo Martino e Ana Paula Sapaterra, da PUC-SP. Ou o escritor José de Alencar sendo preterido em um ministério por cultivar o hábito das letras, que, alegava-se, manchava a carreira política. É sintomático, nesse sentido, que poucos hoje saibam quem foi Raimundo Correia ou tenham, de fato, lido José Alencar além dos bancos escolares. Mas há outros que também não escaparam da covardia. Nelson Rodrigues, por exemplo, que voltou à baila recentemente pela merecida reedição do seu clássico “O Reacionário”, talvez tenha sido o maior alvo de cancelamento intelectual no Brasil do século XX, com peças censuradas em épocas distintas, boicote a livros por mera conveniência política, brigas forjadas por meio de jornais, tudo para ofuscar o incrível talento de Nelson, um gigante das nossas letras. Conta-se até que o dramaturgo morreu sem o prestígio que merecia. Felizmente, no entanto, foi reabilitado pela posteridade, após seus escritos virarem série de TV, para desgosto dos seus tantos canceladores, hoje esquecidos pela história. Isso para ficar apenas no campo da literatura e não falar da música, mais especificamente de um talento como Wilson Simonal, cujo “cancelamento” foi muito bem retratado em livro e documentário. O pior é que, dito tudo isso, tenho a impressão de que opinei mais do que deveria. Talvez seja o retrato do tempo em que vivemos, onde tudo é opinião. Como dizia o Bandeira, perdoai. Melhor voltar a ler os gregos…