Grande Herberto!

A pandemia que ainda estamos vivendo tumultuou a nossa vida por completo, não é mesmo? Às vezes, nem nos lembramos da rotina de antes, tão acostumados que já ficamos com esse nada admirável mundo novo. Lembrei-me de um amigo que, dia desses, encontrei numa loja, trazendo à tona o fato de estarmos há meses sem nos vermos, quando isso ocorria rotineiramente.
Se bem que a amizade de hoje já não é mais a mesma… Além do contato virtual se sobrepor ao pessoal, a falta de tempo parece ser a premissa do mundo moderno. O que me conforta, entretanto, é saber que isso não é novidade. Nem mesmo a “síndrome da era de ouro”, retratada por Woody Allen em “Meia-Noite em Paris”, por exemplo, às vezes parece vingar, pois o mundo antigo também tinha suas vicissitudes.
Basta ler as cartas trocadas entre Carlos Drummond de Andrade e Cyro dos Anjos, reunidas em livro, anos atrás. Mesmo residindo na Belo Horizonte dos anos 1930, os dois mal conseguiam se ver! Moravam na mesma cidade, mas trocavam cartas que, às vezes, levavam semanas para serem respondidas, como se um estivesse no Oiapoque e outro no Chuí. Não é curioso?
(Lembrei-me, agora, da velha máxima de José Cândido de Carvalho, que, nos anos 1960, se não me engano, se escusava de algum eventual sumiço, alegando que amigo era aquele sujeito que a gente vê de seis em seis meses).
Aliás, por falar em José Cândido, este mês uma livraria da cidade fez um gesto mui amigo: colocou a preço de banana uma das memórias mais bem escritas em português: o “Subsidiário”, do baiano Herberto Sales, que deu um belíssimo exemplo de amizade para com o autor de “O Coronel e o Lobisomem”.
Ainda jovem em Andaraí, interior da Bahia, Herberto teve contato com livros a partir do pai e do irmão, que ficavam a par da literatura brasileira pelo então serviço de reembolso postal, por viverem em uma cidade “deserta de livrarias”. Boa parte das obras que chegavam, entretanto, não despertava a admiração dos dois, até que, um dia, chegara um livro de capa amarela, que desta vez agradou bastante ao pai, fazendo este recomendar a leitura ao jovem Herberto, que devorou a obra com vigor e fervor.
De tão empolgado com a leitura, o futuro autor do “Subsidiário” fez de tudo para saber mais daquele livro. Mas foi em vão. Não havia outras obras disponíveis, nem mais informações sobre o autor. Dava a impressão de que aquele homem não existia.
Anos se passaram e Herberto exerceu inúmeras profissões, até enfim sentir-se apto à literatura: escreveu um livro, rumou para o Rio de Janeiro e logo fez seu nome na imprensa carioca como um dos mais promissores romancistas de seu tempo. Trabalhava como diretor de uma revista de variedades quando, certo dia, apareceu um senhor polido, magro e bem vestido, com alguns originais na mão, dizendo que estava ali para entregar um livro a ser republicado pelas gráficas da empresa. O volume se chamava “Olha para o céu, Frederico!”.
E foi assim, décadas depois de sua leitura de garoto, que Herberto se viu diante daquele escritor – e daquele livro – que abrira sua imaginação literária na juventude, fazendo-o saltar da cadeira e cumprimentar José Cândido com efusão, fazendo este ficar deveras assustado, sem saber do que se tratava. Iniciava-se ali uma das grandes amizades de nossa literatura, que perdurou por toda a vida, como está no discurso de recepção de José Cândido na ABL, escrito pelo próprio Herberto Sales, também imortal.
Foi esse clima de saudosismo que senti ao ter em mãos o “Subsidiário”, onde, já nas primeiras páginas, o autor nos lega uma importante lição sobre o assunto: “Fiz ao longo da vida muitas amizades. Talvez ainda me sobre vida para fazer mais algumas. Fiz amizades ilustres, entre escritores, e fiz amizades entre gente simples. Amizades sinceras? A amizade é, ou não é. Dispensa adjetivos. Sou, por feitio e vocação, um amigo. Mas, como pode haver amigos, se a humanidade é má e o homem é a unidade dela? Que é, afinal, a amizade? Talvez a amizade nada mais seja que o esforço que fazemos para pôr alguém a salvo de nós próprios”.