Um amigo suscitou, dias atrás, uma questão interessante: como explicar o fato de vivermos em um mundo onde tantas pessoas buscam fugir da realidade, mas, ao mesmo tempo, não o fazem pelo caminho da arte, que tem o poder de aprimorá-la? O amigo fez menção, inclusive, ao conceito de suspension of disbelief, a famosa “suspensão da descrença”, termo cunhado por Samuel Taylor Coleridge para designar o sentimento de anestesiarmos temporariamente o nosso senso crítico ao acreditar numa realidade inventada, como um filme ou um livro, por exemplo. Ele acreditava que muitos estão perdendo até a capacidade de se encantar com uma determinada narrativa, sepultando assim a máxima coleridgiana.
Bem, pode parecer um papo chato, mas o que o amigo dizia era simples: boa parte da população está cansada das notícias negativas da TV, das preocupações cotidianas relativas ao coronavírus, entre outros problemas casuais, mas, em vez de buscarem o refúgio em grandes obras da literatura ou do cinema, passam o tempo anestesiando-se com as redes sociais, jogos de smartphones ou até mesmo em vícios deletérios para evadir-se do mundo.O engraçado é que, nessa conversa, lembrei da entrevista do escritor Paul Auster, concedida a Pedro Bial, onde ele dizia que a literatura era uma forma do ser humano internalizar outra voz que não fosse a sua. Ler um clássico, por exemplo, não apenas nos coloca dentro da cabeça de personagens com vidas que jamais viveríamos: eles também passam a falar dentro de nós, potencializando a magia com que a arte tece sua trama.
Curiosamente, nessa quarentena, muitos internautas vêm ressuscitando filmes como “Interestelar”, de Christopher Nolan. O longa narra uma verdadeira viagem intergaláctica, onde astronautas buscam uma salvação para o fim da vida na terra. Apesar de o filme ter entrado nos trending topics, a maioria dos comentários relativos a ele abordava aspectos banais da história, como as passagens científicas e algumas tomadas astronômicas, cheias de efeitos especiais. Poucos, entretanto, notaram como o longa se sustentava na mais fina literatura para descrever a relação entre um pai e uma filha, ilustrando como era forte um amor puro, aquele capaz de “mover o sol e as estrelas”, como nos versos de Dante.
“Interstelar” mostrava, assim, como o mais humano de todos os sentimentos podia ultrapassar qualquer barreira científica (e desbravar até outros planetas), numa alusão quase direta à obra dantesca. Enquanto isso, outro personagem da trama era alicerçado em um eixo dramático cujo mote era um dos mais famosos poemas do galês Dylan Thomas, dando um toque emocional e artístico que ia muito além dos efeitos especiais do filme. Eis aí, em “Interstelar”, um dos grandes papéis da arte: ajudar-nos a depurar a realidade, torná-la mais rica, mais colorida, indo sempre um pouco além do que os olhos podem ver.
Já o poeta Mario Quintana escreveu, em um de seus livros, que não importa o enredo de uma narrativa: o que vale é o êxtase de quem escuta. “Por isso é que as crianças gostam de ouvir sempre as mesmas histórias, como se fosse da primeira vez”. O recado de Quintana era claro: a vontade de saber e o gosto de ser surpreendido vale muito mais do que o enredo em si. Talvez seja essa a chave para um dos grandes problemas culturais do nosso país: o temor infundado de muitas pessoas em adentrarem alguns livros, presumindo que serão difíceis ou impossíveis de ler, sem saber que o interesse pessoal é que determinará a fruição e o próprio prazer da leitura. Os livros dependem de nós.
Se em “Interstelar” os humanos se sentiram forçados a fugir da realidade, a ponto de sair do planeta, na vida real podemos evadir-se através da própria arte, que, como nos ensinava o poeta Ferreira Gullar, só existe porque a vida não basta.